terça-feira, 20 de outubro de 2009

A CUFA INDICA:


O Escudeiro da Luz em Os Zumbis da Pedra


CAPÍTULO 1


Nilinho foi até a beira do precipício, deu uma espiada rápida para baixo e sentiu a cabeça girar. As pernas amoleceram e ele teve que se segurar para não despencar lá de cima. Sabia que lá embaixo, na escuridão daquela garganta medonha, rastejavam criaturas horrendas, cheias de pernas cabeludas, tentáculos gosmentos, dentes afiados, aranhas, escorpiões gigantes, galinaceosauros-rex e crocodilos famintos que cuspiam fogo por qualquer coisinha.

Olhou desanimado para a outra margem. Parecia impossível vencer aquela distância num pulo só, mas ele precisava chegar ao castelo da árvore o quanto antes e, para isso, teria que atravessar a temível garganta do esporão. Seu irmão, Nando estava lá agora, lutando sozinho com os cruéis e sanguinários sete lobos do terrível Conde Leopoldo XXIII. Pensou em desistir, mas a imagem do irmão, cercado de lobos assassinos por todos os lados, fez com que reunisse toda a coragem e forças que tinha para pular o abismo. Deu uns passos para trás, respirou fundo e pimba!

O corpo magro e ágil desenhou um arco no ar, os dois pés bateram com força na beirinha da outra margem, balançou pra trás desequilibrado e rapidamente agarrou-se nos galhos retorcidos de uma árvore. Ficou ali, abraçado no tronco da árvore, escutando a agitação das feras lá no fundo do abismo. Podia sentir o hálito quente e mal cheiroso daquelas criaturas. Esperou o coração compassar e seguiu viagem. O primeiro obstáculo estava vencido. Apressou o passo, ainda tinha que andar um bocado pela estreita beirada do precipício para chegar até o castelo e ajudar o irmão. Um espesso nevoeiro agora cobria tudo e o cheiro repugnante que vinha lá debaixo entrava queimando por suas narinas e ele quase não conseguia respirar. De repente, um tentáculo pegajoso e enorme agarrou uma de suas pernas e ele foi alçado no ar e depois puxado para as profundezas do abismo; conseguiu agarrar-se nas raízes que brotavam das paredes úmidas da garganta e, com o pé que estava livre, chutou com toda a força o tentáculo pegajoso.

Livre, escalou a parede de volta e começou a correr, desviando das pontas afiadas das pedras, das plantas carnívoras, dos poços de areia movediça, das setas envenenadas de terríveis pigmeus; atravessou uma teia gigante de aranha gigante, escapou por pouco dos dentes afiados de um Esfomeadosauro-rex e das pinças enormes de uma coisa parecida com um caranguejo com cabeça de leão, e finalmente chegou ao pé da figueira onde ficava o castelo. Como um tigre, escalou o tronco da árvore e chegou a tempo de tirar o irmão de dentro da boca de um dos lobos.

Na verdade, não era um castelo, eram só umas madeiras que o irmão havia pregado no tronco da figueira que ficava no pátio do vizinho, o seu Leopoldo, que morava na casa 23, ao lado da sua, e que tinha sete pequenos vira-latas. A Garganta do Esporão era um pequeno espaço onde seu pai criava um galo e duas galinhas. Toda essa aventura se passava na cabeça de Nilinho quando ele pulava da janela do seu quarto, que era quase encostada no muro do seu Leopoldo, andava dez passos sobre o muro e chegava até a figueira.

Gostava de ficar ali na figueira com o irmão Nando conversando e vendo a cidade lá embaixo. Aventura mesmo era estar ali com o irmão mais velho escutando ele falar sobre as namoradas, a turma da escola. Legal mesmo era ser o “fiel escudeiro” do irmão. Um dia, Nando levou ele pra conhecer uma garota e o apresentou assim: Esse é meu irmão, Nilinho, meu “fiel escudeiro”. Achou aquilo muito legal, não sabia o que era escudeiro, mas sentiu que era uma coisa importante e boa, algo assim como “o melhor amigo do mundo”. Às vezes ficavam horas sem dizer uma palavra, só olhando as luzes da cidade. Nilinho tinha orgulho de ser irmão do Nando. Nando era forte, bem humorado e não era feio; pra falar a verdade, Nilinho até que achava o irmão bem bonito. Com ele sentia-se protegido não tinha medo de nada, nem de perguntar nada, qualquer bobagem que lhe viesse à cabeça, como aquela vez que perguntou para o irmão se havia grama na lua pro cavalo do São Jorge comer.

Agora lá estava ele, sozinho. Anoitecia, e as luzes da cidade começavam a acender. Por onde andaria o irmão?



CAPÍTULO 2


Nando tinha mudado, andava muito estranho. Mal parava em casa e na figueira nunca mais tinha posto os pés. Nilinho chegou a se queixar para a mãe. Teu irmão está crescendo — respondeu ela — deve estar com alguma namorada. A resposta da mãe não convenceu Nilinho. Para ele era ao contrário, o irmão tinha era encolhido, estava mais magro e se fosse namorada nova, mais uma razão para os dois conversarem. Nando gostava de falar para ele sobre as garotas com quem estava saindo.

O irmão agora ganhara um apelido do pai: “ligação a cobrar”, porque quando lhe perguntavam alguma coisa, demorava para responder. Ao contrário daquele cara agitado de antes, agora parecia uma lesma se arrastando pela casa. A mãe passou a lhe chamar de “lesma tonta”, tudo na brincadeira, é claro, e Nando parecia não se importar. Na verdade, o irmão parecia não se importar com mais nada. No último dia das mães, não fosse Nilinho falar, ele tinha esquecido. Muito diferente daquele cara que no ano anterior havia desenhado com flores no jardim o nome dela. O pai às vezes comentava alguma coisa sobre futebol, mas ficava quase sempre falando sozinho; Nando já não se interessava pelo time, estava sempre na rua, até mesmo quando tinha futebol na tv, que era quando os dois sentavam para torcer, xingar o juiz, gritar e se abraçar quando saía um gol.

Se Nando parecia não se preocupar com mais nada, Nilinho, por sua vez, nunca esteve tão preocupado com o irmão, tentava puxar assunto, brincar, mas não era correspondido. Um dia, numa dessas tentativas de chamar a atenção do irmão, chamou ele de “sorriso de banana”, porque seus dentes, que antes eram muito brancos, estavam ficando amarelados. Nando lhe devolveu um olhar furioso e pela primeira vez, Nilinho sentiu medo dele. Nunca tinha visto aqueles olhos no rosto do irmão, olhos sem brilho, fundos... de raiva.

Outro dia, Nando entrou correndo e se trancou no quarto dizendo que precisava se esconder. Todos ficaram muito assustados; o pai queria saber o que tinha acontecido de tão grave, perguntava do lado de fora da porta, mas Nando só dizia que precisava se esconder; a mãe, chorando, pedia pra ele abrir para conversarem, Nando gritou para ela parar de bater, que calasse a boca e deixasse ele em paz. Nilinho nunca tinha visto o irmão falar assim com a mãe... teve vontade de arrombar a porta e dar uma surra no irmão.

Uma noite, o pai tentou impedir que Nando saísse, estava começando a se aborrecer com a rotina do filho, que mal anoitecia e ganhava a rua. Tu parece um zumbi — gritou o pai. Os dois discutiram como nunca haviam discutido antes. A mãe pegou o Nilinho e levou pro quarto. A conversa exaltada dos dois só terminou quando Nando bateu a porta e saiu para rua esbravejando. Nilinho perguntou pra mãe se ela também achava que o mano estava virando zumbi. – deixa de bobagens, Nilinho – disse ela apertando ele contra o peito.

Naquela noite, Nandinho não conseguiu dormir, ficou deitado olhando a cama do irmão ao lado, vazia. O pai tinha razão, Nando parecia mesmo um zumbi. Lembrou que o irmão gostava muito de livros e revistas de terror, tinha uma coleção que não deixava ninguém mexer. Será que leu tanto essas coisas que acabou com alguma maldição?

Nilinho foi até o armário onde o irmão guardava a coleção, pegou algumas revistas e começou a folhear. Vampiros, espectros, bruxas, demônios... Nilinho já começava a se arrepender de ter mexido naquilo, era um susto a cada página. Enfim, encontrou uma que se chamava “Ninguém sabe o que os zumbis fizeram na noite passada”. As figuras eram mesmo assustadoras. Será que o irmão ia acabar assim!?

Precisava fazer alguma coisa e depressa. Começou a ler a história, era como qualquer outra do gênero: um acidente radioativo causou uma epidemia na cidade que rapidamente se espalhou para o mundo todo. Os sobreviventes se juntaram para combater a horda de zumbis famintos cuidando para não serem mordidos por eles e também virar zumbis, até que todo mundo morre, menos os zumbis que já estão mortos, mas não sabem.

Já era tarde da noite quando Nandinho fechou a revista, assustado, mas sabendo que zumbis vivem em grupos, não gostam de luz, estão sempre querendo morder alguém e sempre escabelados, pois não conseguem ver no espelho sua imagem, que não reflete em espelho nenhum. Quando Nando chegou da rua, Nilinho já tinha guardado a revista e se enfiado todo debaixo das cobertas, com medo do irmão. Escutou a porta da geladeira abrindo e fechando na cozinha, o barulho da descarga no banheiro, os passos no corredor e o leve ranger da porta do quarto se abrindo. O irmão nem acendeu a luz, se atirou na cama sem tirar a roupa, sem banho, sem escovar os dentes... Bem coisa de zumbi – pensou Nandinho, tremendo embaixo das cobertas.

No outro dia, decidido a tirar a limpo aquela história, Nilinho esperou o irmão chegar da rua armado com um espelhinho que ele pegara emprestado da mãe. Se o irmão não refletisse no espelho, era porque já tinha virado zumbi e aí era tarde demais. Já estava quase dormindo escorado na mesa da cozinha quando escutou o portão bater. Tirou do bolso o espelho e fingiu que brincava. Nando entrou e perguntou o que ele estava fazendo acordado numa hora daquelas e ele disse que estava sem sono. Enquanto Nando procurava algo para comer na geladeira, Nilinho, com o espelho, procurava um ângulo para mirar o irmão. Quando finalmente conseguiu ver a imagem do irmão refletida, deu um grito de alegria — Legal! — Nando virou-se rapidamente, levantou a mão em direção ao rosto do Nilinho, como se fosse bater nele: – Cala a boca, pirralho! — A mão ficou no ar e o olhar irado do irmão paralisou Nilinho — Deixa de grito! Quer que os coroas acordem e venham me encher o saco!?

Nilinho, apavorado, segurou o choro, baixou a cabeça e ficou olhando fixo para a mesa. Depois de um tempo, que lhe pareceu uma eternidade, levantou os olhos e ficou observando o irmão sentado a sua frente comendo um sanduíche. Os braços dele, que antes eram fortes, de causar inveja nos amigos e provocar olhares maliciosos nas meninas, agora pareciam dois gravetos cheios de feridas e marcas, como se há pouco tivesse levado uma surra; os cabelos desgrenhados e sujos, assim como as mãos e as unhas. Tava na cara que há muito ele não tomava um banho.

Nando comeu em silêncio, levantou da mesa, olhou em volta, como se procurasse alguma coisa, pegou o liquidificador, enrolou no casaco e disse pro Nilinho: — Tô levando isso aqui, cara, se contar pros coroas, vai se arrepender. — Antes de bater a porta, se virou e mais uma vez e ameaçou Nilinho, desta vez sem palavras, apenas com os olhos.

Depois disso, Nilinho não falou mais com o irmão. Às vezes acordava à noite com o barulho dele deitando na cama ao lado, mas logo dormia, já não sentia medo, não sentia mágoa nem nada. Era estranho não sentir nada pelo irmão – estranho e triste – e esta tristeza agora era a sua companheira, a sua “fiel escudeira”. Passava a maior parte do tempo trancado no quarto desenhando... desenhava a mãe chorando, o pai gritando, desenhava-se sem as orelhas para não escutar as brigas que diariamente aconteciam do lado de fora da porta, desenhava o quarto sem portas e sem janelas para os zumbis não entrarem e para ele não precisar sair. Um dia, o pai e o irmão brigavam por causa de um anel da mãe que havia desaparecido e quando começaram a gritar um com o outro, Nilinho começou a se desenhar sem as orelhas e estranhamente os gritos pararam, então, ele desenhou um cara tocando violino e dormiu ao som de uma linda música. Uma noite, um forte temporal desabou sobre a cidade. Nilinho acordou assustado com o barulho do vento e dos trovões, abriu os olhos e viu a sombra de alguém dentro do quarto, parado em frente à janela. Teve vontade de gritar, mas o medo lhe tirou a voz. Um relâmpago cortou o céu clareando tudo em volta e Nilinho pôde ver que era o Nando, parecia hipnotizado pelo turbilhão da tempestade lá fora. Nilinho desceu da cama, foi até a janela e parou ao lado dele. Não teve coragem de fitá-lo, ficou olhando as nuvens que pareciam enormes serpentes contorcendo-se no céu.

Pensou:— O inferno deve ser assim.

Neste momento, o irmão falou:

— Parece o inferno, mas não é. Eu sei onde fica o inferno.

— Nilinho ficou surpreso. O tom de voz do irmão parecia o mesmo de antes, de quando eles conversavam coisas sérias lá no castelo da figueira.

E onde é o inferno? — perguntou gaguejando.

— É aqui dentro — disse o irmão apontando para o próprio peito.

Nilinho sentiu pena do irmão e um carinho que há tempos não sentia. Olhou o seu rosto magro, cheio de manchas, o olhar perdido na escuridão lá fora e teve vontade de chorar.

— Nando — disse com lágrimas nos olhos — se zumbi puder ter um escudeiro, pode contar comigo.

Nando olhou para ele e tentou esboçar um sorriso, passou a mão nos seus cabelos num gesto que lhe pareceu cheio de carinho e dor, depois foi até o armário, pegou as poucas roupas que ainda tinha, colocou numa sacola e saiu. Quando Nilinho escutou a porta da rua bater, abriu a janela, e a chuva e o vento quase o jogaram no chão. Subiu o muro e correu até a figueira. Lá de cima pôde ver a figura curvada do Nando sendo engolida pelo temporal e desaparecer na esquina. Sentiu que nunca mais veria o irmão.

Quando Nilinho voltou para o quarto viu que o estojo que guardava sua maior relíquia estava aberto. Nando tinha levado, entre outras coisas, o relógio de bolso que ele tinha ganho do vô Rodholfo. Nilinho adorava o avô e este havia lhe dado de presente o relógio antes de morrer. Ficou se perguntando como é que o Nando pôde fazer uma coisa dessas, sabendo que aquele relógio tinha um valor inestimável pra ele. Que tamanho mal tinha se apoderado do irmão que fazia com que ele não respeitasse nem isso?




CAPÍTULO 3


O irmão não voltou mais para casa. A mãe dizia que era por causa do pai e o pai dizia que era por causa da mãe... já não se entendiam mais e o pai também foi embora. Nilinho encheu um caderno com desenhos do irmão e do pai voltando, mas eles não voltaram. Desanimado e triste, guardou os lápis numa gaveta e não desenhou mais.

Um dia, enquanto ele e a mãe jantavam, a mãe perguntou por que ele parara de desenhar, ela gostava tanto dos seus desenhos. Disse que pareciam mágicos, vivos, que ela ficaria muito contente se ele voltasse a desenhar de novo.

Acho que não consigo mais — respondeu.

Por que você não tenta? — insistiu a mãe — você já viu nosso jardim como está?

Era o seu pai quem cuidava dele e agora eu não tenho mais tempo para cuidar e o capim tomou conta. Por que você não desenha umas flores pra mim?

A mãe andava muito triste e tinha razões de sobra para isso, o pai tinha ido embora e o Nando não dera mais notícias. Ela agora tinha que trabalhar dobrado para sustentar a casa ou o pouco que havia sobrado do que antes ele chamava de “meu lar”. Nilinho sabia que ela fazia um esforço tremendo para que ele não percebesse o quanto estava triste e cansada. Os dois só se viam pela manhã, no café, antes dele ir para a escola e à noite, quando ela chegava do trabalho e aí jantavam juntos e conversavam um pouco antes do cansaço vencê-la.

Nilinho foi pro quarto, tirou os lápis da gaveta, sentiu um amor tão grande pela mãe que chegou a doer no peito e então encheu um caderno de margaridas – as flores preferidas da mãe – desenhou margaridas até pegar no sono. Pela manhã, a mãe entrou no quarto correndo: Nilinho, venha ver o que eu encontrei no jardim! No meio do capim alto, no único pezinho de margarida que restara, nascera uma flor. Valente ela, não?

— disse a mãe, ajoelhada ao lado da plantinha — sozinha, no meio dessas ervas daninhas, teve forças para desabrochar e mostrar sua beleza pra nós. Isso nos dá esperanças. Nilinho se agachou a lado da mãe, roçou levemente os dedos nas pétalas brancas da flor, olhou para o jardim em volta e percebeu a diferença: não tinha notado até aquele momento que o jardim estava daquele jeito, a beleza daquela pequenina flor fez com que seus olhos vissem que já não havia mais jardim, mas que bastava um gesto de amor para que tudo começasse a se transformar. Fui eu que desenhei essa flor pra ti — disse abraçando a mãe.

O pai começou a vir buscá-lo aos fins de semana para saírem juntos. Iam ao cinema, ao shopping, às vezes numa praça. Era divertido, mas nunca completo, sempre faltava alguma coisa, claro que era a mãe e o irmão, mas Nilinho tentava não demonstrar isso para o pai, que se esforçava para agradá-lo. Nilinho contou para ele o que tinha acontecido no jardim depois que ele desenhara as margaridas. O pai deu uma risada e disse:

— Por que você não desenha uma mala cheia de dinheiro pra mim?

Nilinho ficou pensando e perguntou:

— Daí o senhor pega esse dinheiro e dá pra o rei dos zumbis para ele libertar o Nando?

— Que rei dos zumbis? — perguntou o pai.

— Eu sei o que aconteceu com o mano, pai — continuou Nilinho — ele foi mordido por um zumbi e virou um deles; eles têm um chefe que pede dinheiro pra eles e se eles não conseguirem, o chefe não dá uma coisa pra aliviar a dor deles. Sabia que os zumbis sentem muita dor?

Porque estão morrendo e ainda vivendo, não sei explicar direito.

O pai arregalou os olhos, assustado com a história que o filho contava.

— O Nando ficou sem dinheiro pra comprar a coisa pai e aí começou a levar as coisas lá de casa para o chefe dos zumbis e quando não tinha mais o que levar, o chefe prendeu ele e agora...

— Tá bom, Nilinho! Para com essa história maluca. — disse o pai com cara de tonto

— Não desenha mala de dinheiro nenhuma, só dinheiro não vai salvar o teu irmão. Desenha ele voltando pra casa bem bonito e forte, livre dessa maldição, tá bom?

Quando Nilinho chegou em casa tentou desenhar o irmão, bem bonito como era antes, mas não conseguiu. Nando havia se transformado tanto e tão violentamente que até a imagem do que antes era, havia se apagado.

Jogou o caderno cheio de figuras disformes e traços trêmulos na parede do quarto, desistindo. Se atirou na cama e começou a chorar de raiva. Sentia-se fraco e inútil. Ele que um dia tinha sido o fiel escudeiro do irmão, que tantas vezes o tinha salvo dos dentes afiados dos lobos do Conde Leopoldo, agora não conseguia tirar o irmão da escuridão em que havia entrado. Escudeiro de meia-tijela, escudeiro de anão de jardim... Que fiel escudeiro era ele, que já não conseguia empunhar um lápis para lutar contra um bando de mortos vivos e que agora chorava com a cara enterrada no travesseiro?

— Cadê meu fiel escudeiro? — uma voz ecoou no quarto.Nilinho levantou a cabeça depressa. Era a voz do irmão.



CAPÍTULO 4:


Olhou em volta, mas não havia ninguém no quarto. Por um instante, achou que ia ver o irmão na porta, sorrindo com todos os seus dentes brancos, vindo em sua direção com os braços estendidos. Já era noite, a luz do quarto estava apagada, apenas o azulado da lua pela janela. Esperou os olhos acostumarem-se com a pouca luz. Num canto do quarto, o caderno jogado. Pegou o caderno, um lápis e começou a rabiscar.

— Cadê meu fiel escudeiro? — escutou novamente a voz do irmão.

Estava no escuro, como estava o irmão. Sentia-se fraco, como o irmão, sentia sede, muita sede, mas não era de água, não sabia do que era, sentia falta de alguma coisa, mas não sabia do quê. A mão continuava a desenhar no caderno. Lá fora, uma nuvem cobriu a lua e a fraca luz que entrava pela janela se apagou de repente... agora era só escuridão. Tudo parecia morto, como a alma do irmão; apenas a mão com o lápis tinha vida e continuava a correr pela folha do caderno. A mãe bateu na porta, o jantar estava na mesa e foi como se tivesse despertado de um sonho que não sabia se bom ou ruim. Sentiu as pernas doerem quando tentou levantar, devia ter ficado muito tempo naquela posição, largou o lápis e tateando no escuro, foi até a porta.

— Vem logo senão vai esfriar tudo — a mãe gritou da cozinha.

— Tô indo! — respondeu.

Depois da janta, voltou para o quarto, acendeu a luz, recolheu o caderno do chão e quase caiu para trás quando viu o desenho que havia feito. Era a figura de um homem. Vestia um casaco de capuz vermelho, era negro e tinha tranças no cabelo, usava um óculos de aros grossos que emolduravam um olhar fulminante que dava medo e ao mesmo tempo segurança. Por baixo do casaco, usava uma camiseta preta com um círculo com as letras “e” e “l”. Nilinho não sabia como havia conseguido desenhar aquele personagem, afinal de contas, nunca tinha visto aquele homem em lugar nenhum. Como poderia ter desenhado alguém que nunca tinha visto ou sequer imaginado?

E ainda por cima no escuro!

E aquelas iniciais?

EL?

O que queriam dizer?

Era como o “S” no peito do super-homem ou o “CH” do Chapolim Colorado. Nilinho passou a especular o significado daquelas letras:

Elefante Laranja?

Estranho Lunático?

Deitou com o caderno nas mãos pensando e dormiu. Despertou no meio da noite, gritando:— Escudeiro da Luz! Isso! Este é o significado das letras!

— Acertou — disse alguém na cama ao lado, onde antes dormia seu irmão.

Nilinho acendeu a luz do abajur e assombrado, viu que era o cara do desenho que estava ali, sentado na beira da cama.

— Ufa! Até que enfim você escolheu um nome decente — disse o cara.

— Quem é você? — perguntou Nilinho esfregando os olhos.

— Você acabou de dizer, Escudeiro da Luz. Este nome eu gostei. Agora, Elefante Laranja! Faça-me um favor...

— O que você faz aqui?

— Como eu vou saber, você quem me chamou!

Vai ver tá com medo de dormir sozinho — disse a figura levantando e examinando o quarto

— Eu não chamei ninguém e não tenho medo de dormir sozinho — disse Nilinho invocado

— E para de mexer nas minhas coisas.

— Gostei do teu traço — disse o Escudeiro examinando os desenhos do Nilinho — principalmente este aqui. Que sujeito bonito.

— Este é você. E eu ainda fiz no escuro.

— E este estojo?

Que lindo — o Escudeiro examinava com atenção o estojo do relógio de bolso.

— Deixa isso aí cara, é um estojo de relógio de bolso.

— Cadê o relógio?

— Não sei. Acho que meu pai saiu com ele — respondeu o Nilinho com vergonha de dizer que o irmão tinha roubado.

— O seu Rodholfo?

— Não, o seu Rodholfo era meu avô.

— Mas tá escrito aqui, atrás do relógio “Rodholfo”

— Eu já disse. Rodholfo era o meu avô que morreu e deixou esse relógio pra mim.

— E por que teu pai tá usando?

— Você é curioso hein, meu?

— Disse o Nilinho tirando o estojo das mãos do Escudeiro.

O Escudeiro agora mexia no armário.

— O que você quer agora no armário?

— perguntou Nilinho.

O Escudeiro fez que não ouviu.

— Que legal, revistinha de terror! Adoro!

— Larga isso! É a coleção do meu irmão.

— Cadê as outras?

— Não têm outras. Só essas.

— Então não é coleção, coleção é um conjunto ou reunião de objetos da mesma natureza ou que têm qualquer relação entre si — disse o Escudeiro num tom provocativo como se estivesse lendo o verbete de um dicionário.

— Tá bom, as outras estão guardadas em outro lugar — desconversou Nilinho.

— E onde estão? Me mostra.

— Não sei, meu irmão escondeu bem escondido. Ele adora essas revistas, não deixa ninguém tocar pra não amassar, entende?

— E onde está teu irmão? Tenho certeza de que consigo convencê-lo a me deixar dar uma espiadinha nelas — Insistiu o Escudeiro.

Nilinho não podia dizer que o irmão tinha virado zumbi e que tinha vendido todas as outras revistas e o relógio dele para dar o dinheiro para o chefe dos zumbis, então disse que o irmão tinha viajado.

— Pra onde ele foi? Eu vou até lá, distância não é o problema. Veja isso – E o Escudeiro desapareceu de onde estava.

Nilinho olhou em volta desnorteado.

— Onde você se meteu?

— Estou aqui.

— O escudeiro apareceu do lado de fora da janela.

— E aqui — Em cima do armário

— E agora aqui. — debaixo da cama.

Mentira é assim, você conta uma e logo tem que contar outra.

— É muito, muito longe — disse Nilinho meio tonto

— Acho que é uma ilha.

— Qual o nome da ilha.

— É uma ilha sem nome, fica no meio do meio do oceano.

— Que oceano?

Nilinho estava ficando sem saída.

O tal Escudeiro era mesmo insistente e não ia desistir tão fácil.

— É um oceano que ninguém sabe bem onde fica, tem ondas enormes e é cheio de tubarões e outros animais monstruosos. A ilha tem sete vulcões que cospem fogo o tempo todo e uma vez por semana uma onda gigante passa por cima dela varrendo tudo que encontra pela frente.

— Nossa! — disse o Escudeiro admirado.

— E eu ainda não contei sobre os terremotos e as chuvas ácidas e as nuvens de gafanhotos e ...

— Para! — ordenou o Escudeiro.

— Puxa! que imaginação você tem hein, meu?

Nilinho calou-se envergonhado, achando mesmo que desta vez tinha passado dos limites. O Escudeiro deu umas voltas em silêncio pelo quarto como se estivesse pensando “O que que eu faço com esse carinha”. Depois, sentou-se ao lado do Nilinho.

— Você realmente é muito criativo, prova disso sou eu. Estou aqui porque você me criou. Sou um produto da sua cabecinha e sobretudo do amor que você sente pelo seu irmão. Estou aqui porque você não teve vergonha de pedir ajuda, porque você teve coragem de encarar que sozinho ninguém vence os zumbis.

— Você sabe sobre o Nando? E sobre os zumbis? — perguntou Nilinho admirado.

— Claro que sei. Sei dele e de muitos outros jovens que como ele, caíram nessa rede de horror. Você não precisa ter vergonha só porque teu irmão caiu nessa armadilha também. Eu vou te ajudar a resgatá-lo das garras desses zumbis.

— Será que não é tarde demais?

— Nunca é tarde demais pra tentar. Não vai ser fácil, já travei muitas guerras contra esse mal, venci umas, perdi outras, o importante é nunca desistir. Tenho certeza de que com meu conhecimento e o amor que sentes por ele, nossas chances de vencer são grandes, mas já te aviso: A vitória depende muito mais dele do que de nós dois.

— Só mais uma coisinha — disse Nilinho — enquanto meu irmão não voltar eu posso te chamar de irmão?

— Claro — disse o Escudeiro da Luz estendendo a mão para o Nilinho

— Toca aqui e vamos à luta, mano Nilo.— Certo, mano El. Pode contar comigo.

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